segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Lenda Inacabada (Parte 1)



PE(R)DIDOS

Depois de tanto observar o animalzinho no seu sono tranqüilo, o jovem caçador arrancou a blusa que usava para aliviar algo que o incomodava nas costas – artísticos arranhões marcavam aquela pele alva.

Em seguida foi até a varanda da velha choupana e sentou-se por ali. Antes, porém, teve o cuidado de colocar o cesto onde o animalzinho dormia em frente a porta que permaneceria aberta para o caso de ele despertar e ver que não estava sozinho.

Sentado de costas para a porta escancarada, o caçador virou-se para traz – queria assegurar-se que o bichinho ainda dormia.

-‘Como é linda esta criatura!- ele devia ter pensado. – Agora, ele em nada se parece com o bichinho fragilizado pelos ataques cruéis da existência predadora que outrora fora encontrado sofrendo, de asa quebrada, no jardim da Mãe Natureza. ’

Naquele instante o relógio da sala badalava os doze toques da entrada na meia noite – tão famosa pelo seu poder sobrenatural. Mas ali não existia feitiços para ser desencantados; nada nem ninguém virando abóbora; ou, muito menos ratinhos virando celebrados corcéis. Ali apenas existiam duas vidas interligadas pelo fio do cuidado.

Aquelas badaladas despertaram o bichinho (relógio sacana!). E do cesto onde estava ele podia ver o jovem caçador sentado no primeiro degrau de acesso a velha choupana; sem camisa e com o rosto esticado, olhando para o alto onde talvez, admirasse a renda cintilante das estrelas vazadas pela sóbria escuridão. Os portais de madeira polida da porta de entrada geravam a imagem emoldurada do jovem homem contemplador dos astros iluminado pelos raios azuis do luar – o que deixava aquela pele alva como o mármore branco.

Entretanto, como todo mármore, ele também apresentava veios destacados pelo luar e inflamados. O bichinho levantou-se cuidadosamente sem se fazer notar e ficou analisando as marcas presentes nas costas do caçador. Aqueles arranhões ficavam mais nítidos com a luz da lua que ressaltava os sinais púrpuros irritados de uma inflamação dolorida.

O animalzinho bateu asas e, como toda boa ave de rapina, aproximou-se do caçador sorrateiramente, que se assustou com o vento daquelas asinhas na suas costas.

-Ah, é você! Não estava dormindo? O que está fazendo aqui?

-Vi suas feridas ao longe e quero fazer algo para retribuir o cuidado que teve comigo.

O jovem caçador soltou um sorriso largo. O bichinho levantou mais no seu vou para que planasse no colo do caçador. Tão logo fez isso, o animalzinho pode sentir o calor das mãos do jovem lhe esquentando a penugem.

-Por que não me disse que estava machucado? Por que escondeu isso? – o bichinho quis saber.

-Ora, se você soubesse que eu estaria machucado você me permitiria cuidar de você? Acreditaria que eu, estando debilitado, poderia te ajudar, mesmo estando eu com dores – talvez não como as que você sentia, mas com dores?

O bichinho sorriu com os olhos e balançou a cabeça confirmando que não permitiria a ajuda.

-Pois bem. - continuou o caçador. - Naquele instante sua asa quebrada deveria estar doendo mais que os meus arranhões. Esqueci minhas dores e fui ao teu auxilio.

-Por que não me abateu? Não é isso o que um caçador faz, abater vítimas indefesas?

-Caçar nem sempre significa abater a caça, meu caro. No seu caso em especial, nem armas usei para te capturar e, você está aqui, agora comigo, não está?

-Sim, estou.

-Então, percebe que eu continuo como caçador e você como minha caça, mesmo que você não tenha conseguido fugir e, que eu não tenha tido o trabalho de ter-te perseguido para conseguir o que eu queria?

Uma rajada de ar gélido soprou forte naquele instante e fez o jovem caçador soltar um gemido de dor. O animalzinho percebendo que o sopro de Éolo machucava as costas do jovem pôs-se então a bater asas novamente e vôo sobre a cabeça do caçador, agarrando com uma das patas um tufo de cabelo do caçador, e o puxou.

-Agora você vem comigo, vou cuidar de você. – o animalzinho tentava puxar o caçador para dentro da choupana. As asinhas batiam a toda velocidade e com esforço para que o jovem levantasse.

-Bobo só você mesmo pra pensar que, com estas asinhas, poderia me erguer. – e levantou-se.

-Posso até não ter forças o suficiente para te levantar, mas dei o primeiro passo. Vem, entra logo pro frio não te machucar mais.

-Não se preocupe com o vento, ele veio apenas trazer a boa nova. Fiz um pedido as estrelas enquanto você dormia e fui atendido mais rápido do que pensava. Esse vento gélido que soprou não teve a intenção de me causar dano algum, veio apenas me trazer a resposta para o meu clamor...

-O que pediste?

O caçador abriu seu sorriso rosado enchendo a face de alegria, e respondeu:

-Pedi pra ser como você; ter asas para voar, para poder sair pro aí livre voando alto. Vou querer que você me mostre sua visão da vida, vista lá do alto. Quero poder voar na tua companhia para lugares que eu jamais poderia ir com minhas pernas.

O animalzinho parecia triste com aquele discurso. O caçador percebendo, logo o indagou:

-Ontem, quando eu voava pelo campo, para exercitar minha asa, passei num lindo lugar onde existe um desses poços que as pessoas acreditam ser mágico... Vi muita gente jogando moedas no poço e pedindo algo em troca. Horas depois, quando acabou a movimentação, eu me aproximei e a única coisa que eu poderia oferecer ao poço, era uma oliva que eu trazia na pata. Joguei-a lá dentro e fiz meu pedido... Pedi para ser transformado em gente, assim como você...

O jovem caçador pegou o bichinho, segurou-o bem e colocou-se olho no olho com ele e rindo, disse:

-Vem, vamos entrar, pois já é tarde. E não se preocupe: amanhã refazemos esses nosso Pe(r)didos. Mas aviso: vamos conservar as asas...

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